A história da modernidade é a história da formação, pela primeira vez, de um sistema-mundo. Nos últimos quinhentos anos, as antigas sociedades humanas, que existiram em relativo isolamento durante milênios, foram progressivamente unificadas em um novo sistema muito mais amplo. Essa unificação foi feita por meio da incorporação de áreas e povos ao controle e influência do antigo subsistema europeu.
Os agentes e promotores dessa transformação construíram suas próprias maneiras de compreender e conferir sentido ao que faziam. Primeiro foi a difusão do cristianismo, mas esse discurso correspondia à consciência de um tempo histórico que estava sendo ultrapassado. Logo veio uma consciência nova. O iluminismo forneceu os dois conceitos fundamentais que justificaram o papel universal da burguesia européia: razão e liberdade. Conceitos gêmeos. Até então, a revelação e a tradição é que forneciam normas válidas para a organização da vida social. O pensamento só poderia ocupar um lugar central se também dele fosse possível deduzir princípios e normas universais que ultrapassassem os limites da mera opinião. Enorme desafio. Os iluministas afirmaram que era possível superá-lo: o pensamento podia produzir esses conceitos universais, e à sua totalidade eles denominaram razão. A razão pressupunha a liberdade, pois o sujeito só pode atingir a verdade se o seu esforço de conhecimento não reconhecer nenhuma autoridade externa que lhe imponha limites. E a liberdade pressupunha a razão, pois ser livre é poder agir de acordo com o conhecimento da verdade.
Ao contrário dos defensores das tradições, necessariamente vinculadas a sociedades específicas, as vanguardas da modernidade européia logo proclamaram a validade universal das suas proposições. As mitologias, as religiões, a arte, a tradição, o direito, o Estado, a política e a economia, tudo foi julgado à luz do ideal homogeneizador do progresso. Pela primeira vez, a história passou a ser encarada como um processo. Inseridas nele, todas as demais formas de estar-no-mundo foram declaradas arcaicas. A crítica à consciência histórica da burguesia européia, feita por Marx, começou por colocar essa consciência na história. Marx mostrou que o motor da expansão européia não estava na razão ou na liberdade, considerados como conceitos abstratos. Estava no desenvolvimento pleno, pela primeira vez, das potencialidades e das contradições da forma-mercadoria. Ela esteve presente, é verdade, na grande maioria das sociedades, mas sempre de maneira marginal e limitada. A moderna sociedade européia a libertou.
Isso ocorreu a partir da inclusão, no circuito mercantil, de três elementos que sempre haviam ficado fora dele: a força de trabalho humana, a terra e os meios de produção. Transformar coisas em mercadorias é banal, mas não é banal transformar em mercadorias os atributos fundamentais das pessoas e da natureza. Só então o circuito mercantil reorganizou à sua imagem e semelhança, pela primeira vez na história humana, toda a vida social. Todos os agentes sociais relevantes, inclusive os detentores do poder político, incluíram-se nele. Toda produção passou a ser produção de mercadorias, e a produção de mercadorias passou a ser feita por meio de mercadorias. Ao se fechar, como a cobra que mordeu o próprio rabo, o circuito mercantil se tornou imune a forças externas que lhe eram hostis.
Nos meados do século 19, Marx escreveu que a sociedade assim organizada desenvolveria, pelo menos, três características novas: a) seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, seja pelo aumento da capacidade de produzi-las, seja pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; b) seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido nesse circuito, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; c) seria compelida a criar permanentemente novos bens e novas necessidades; como as “necessidades do estômago” são limitadas, esses novos bens e novas necessidades, criados para dar sustentação a uma acumulação ilimitada de riqueza abstrata, seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia, que também é ilimitada. Essa nova sociedade se desdobraria em três direções fundamentais: promoveria uma revolução técnica incessante (voltada para expandir o espaço e contrair o tempo da acumulação), realizaria uma profunda revolução cultural (para fazer surgir o homem portador daquelas novas necessidades em expansão) e formaria o sistema-mundo (para incluir o máximo de populações no processo mercantil).
Tudo isso se confirmou. De certa forma, esse processo já pertence ao passado, embora recente. Mas o percurso teórico de Marx não foi interrompido aí. Seu verdadeiro lance de gênio foi ter percebido que o capital procuraria ampliar suas possibilidades de acumulação em uma forma (que chamou D – D’) na qual ele nunca deixaria de existir como riqueza abstrata. É, exatamente, o que acontece hoje, com a disparada da acumulação financeira global. Marx anteviu: quando essa forma se tornasse predominante, a civilização do capital entraria em crise. Pois, ao repudiar as “coisas”, o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do mundo-da-vida, a acumulação de capital não poderia mais ser o eixo em torno do qual a vida social se organiza. A forma-mercadoria teria então de ser superada ou, pelo menos, remetida novamente a um lugar secundário, sendo substituída por algum outro princípio de organização da vida social.
Marx nunca deixou de ser um filósofo, mesmo quando fez a crítica da economia política. Eis o que quis nos dizer: mantida sob o comando do capital e aprisionada nos sucessivos rearranjos da forma-mercadoria, a capacidade criadora da humanidade – capacidade que decorre da sua liberdade essencial, ontológica – poderia tornar-se muito mais destrutiva na época do capitalismo senil, quando a potência técnica da própria humanidade já estaria muito mais desenvolvida. Dependendo de quais forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia ser colocada a serviço da liberdade (com a abolição do trabalho físico, cansativo, mecânico e alienado) ou da destruição (com a escalada do desemprego e da guerra).
Essa me parece ser a disjunção mais relevante proposta por Marx e sua profecia mais certeira. O capitalismo venceu. Estamos, finalmente, em um sistema-mundo em que tudo é mercadoria, em que se produz loucamente para se consumir mais loucamente, e se consome loucamente para se produzir mais loucamente. Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, mata-se por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por dinheiro, só se pensa em dinheiro. Cultua-se o dinheiro, o verdadeiro deus da nossa época – um deus indiferente aos homens, inimigo da arte, da cultura, da solidariedade, da ética, da vida do espírito, do amor. Um deus que se tornou imensamente mediocrizante e destrutivo. E que é insaciável: a acumulação de riqueza abstrata é, por definição, um processo sem limites.
O capitalismo venceu. Talvez, agora, possa perder. Pois, antes que o novo tenha condições de surgir, Hegel dizia, é preciso que o antigo atinja a sua forma mais plena, que é também a mais simples e mais essencial, abandonando as mediações de que necessitou para se desenvolver. O momento do auge de um sistema, quando suas potencialidades desabrocham plenamente, é o momento que antecede seu esgotamento e sua superação.
As crises do mundo contemporâneo mostram que a acumulação de capital e a forma-mercadoria não podem mais ser o princípio organizador da vida social. É o desafio que está posto para nós neste século. O pensamento de Marx nunca esteve tão vivo.
Os agentes e promotores dessa transformação construíram suas próprias maneiras de compreender e conferir sentido ao que faziam. Primeiro foi a difusão do cristianismo, mas esse discurso correspondia à consciência de um tempo histórico que estava sendo ultrapassado. Logo veio uma consciência nova. O iluminismo forneceu os dois conceitos fundamentais que justificaram o papel universal da burguesia européia: razão e liberdade. Conceitos gêmeos. Até então, a revelação e a tradição é que forneciam normas válidas para a organização da vida social. O pensamento só poderia ocupar um lugar central se também dele fosse possível deduzir princípios e normas universais que ultrapassassem os limites da mera opinião. Enorme desafio. Os iluministas afirmaram que era possível superá-lo: o pensamento podia produzir esses conceitos universais, e à sua totalidade eles denominaram razão. A razão pressupunha a liberdade, pois o sujeito só pode atingir a verdade se o seu esforço de conhecimento não reconhecer nenhuma autoridade externa que lhe imponha limites. E a liberdade pressupunha a razão, pois ser livre é poder agir de acordo com o conhecimento da verdade.
Ao contrário dos defensores das tradições, necessariamente vinculadas a sociedades específicas, as vanguardas da modernidade européia logo proclamaram a validade universal das suas proposições. As mitologias, as religiões, a arte, a tradição, o direito, o Estado, a política e a economia, tudo foi julgado à luz do ideal homogeneizador do progresso. Pela primeira vez, a história passou a ser encarada como um processo. Inseridas nele, todas as demais formas de estar-no-mundo foram declaradas arcaicas. A crítica à consciência histórica da burguesia européia, feita por Marx, começou por colocar essa consciência na história. Marx mostrou que o motor da expansão européia não estava na razão ou na liberdade, considerados como conceitos abstratos. Estava no desenvolvimento pleno, pela primeira vez, das potencialidades e das contradições da forma-mercadoria. Ela esteve presente, é verdade, na grande maioria das sociedades, mas sempre de maneira marginal e limitada. A moderna sociedade européia a libertou.
Isso ocorreu a partir da inclusão, no circuito mercantil, de três elementos que sempre haviam ficado fora dele: a força de trabalho humana, a terra e os meios de produção. Transformar coisas em mercadorias é banal, mas não é banal transformar em mercadorias os atributos fundamentais das pessoas e da natureza. Só então o circuito mercantil reorganizou à sua imagem e semelhança, pela primeira vez na história humana, toda a vida social. Todos os agentes sociais relevantes, inclusive os detentores do poder político, incluíram-se nele. Toda produção passou a ser produção de mercadorias, e a produção de mercadorias passou a ser feita por meio de mercadorias. Ao se fechar, como a cobra que mordeu o próprio rabo, o circuito mercantil se tornou imune a forças externas que lhe eram hostis.
Nos meados do século 19, Marx escreveu que a sociedade assim organizada desenvolveria, pelo menos, três características novas: a) seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, seja pelo aumento da capacidade de produzi-las, seja pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; b) seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido nesse circuito, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; c) seria compelida a criar permanentemente novos bens e novas necessidades; como as “necessidades do estômago” são limitadas, esses novos bens e novas necessidades, criados para dar sustentação a uma acumulação ilimitada de riqueza abstrata, seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia, que também é ilimitada. Essa nova sociedade se desdobraria em três direções fundamentais: promoveria uma revolução técnica incessante (voltada para expandir o espaço e contrair o tempo da acumulação), realizaria uma profunda revolução cultural (para fazer surgir o homem portador daquelas novas necessidades em expansão) e formaria o sistema-mundo (para incluir o máximo de populações no processo mercantil).
Tudo isso se confirmou. De certa forma, esse processo já pertence ao passado, embora recente. Mas o percurso teórico de Marx não foi interrompido aí. Seu verdadeiro lance de gênio foi ter percebido que o capital procuraria ampliar suas possibilidades de acumulação em uma forma (que chamou D – D’) na qual ele nunca deixaria de existir como riqueza abstrata. É, exatamente, o que acontece hoje, com a disparada da acumulação financeira global. Marx anteviu: quando essa forma se tornasse predominante, a civilização do capital entraria em crise. Pois, ao repudiar as “coisas”, o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do mundo-da-vida, a acumulação de capital não poderia mais ser o eixo em torno do qual a vida social se organiza. A forma-mercadoria teria então de ser superada ou, pelo menos, remetida novamente a um lugar secundário, sendo substituída por algum outro princípio de organização da vida social.
Marx nunca deixou de ser um filósofo, mesmo quando fez a crítica da economia política. Eis o que quis nos dizer: mantida sob o comando do capital e aprisionada nos sucessivos rearranjos da forma-mercadoria, a capacidade criadora da humanidade – capacidade que decorre da sua liberdade essencial, ontológica – poderia tornar-se muito mais destrutiva na época do capitalismo senil, quando a potência técnica da própria humanidade já estaria muito mais desenvolvida. Dependendo de quais forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia ser colocada a serviço da liberdade (com a abolição do trabalho físico, cansativo, mecânico e alienado) ou da destruição (com a escalada do desemprego e da guerra).
Essa me parece ser a disjunção mais relevante proposta por Marx e sua profecia mais certeira. O capitalismo venceu. Estamos, finalmente, em um sistema-mundo em que tudo é mercadoria, em que se produz loucamente para se consumir mais loucamente, e se consome loucamente para se produzir mais loucamente. Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, mata-se por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por dinheiro, só se pensa em dinheiro. Cultua-se o dinheiro, o verdadeiro deus da nossa época – um deus indiferente aos homens, inimigo da arte, da cultura, da solidariedade, da ética, da vida do espírito, do amor. Um deus que se tornou imensamente mediocrizante e destrutivo. E que é insaciável: a acumulação de riqueza abstrata é, por definição, um processo sem limites.
O capitalismo venceu. Talvez, agora, possa perder. Pois, antes que o novo tenha condições de surgir, Hegel dizia, é preciso que o antigo atinja a sua forma mais plena, que é também a mais simples e mais essencial, abandonando as mediações de que necessitou para se desenvolver. O momento do auge de um sistema, quando suas potencialidades desabrocham plenamente, é o momento que antecede seu esgotamento e sua superação.
As crises do mundo contemporâneo mostram que a acumulação de capital e a forma-mercadoria não podem mais ser o princípio organizador da vida social. É o desafio que está posto para nós neste século. O pensamento de Marx nunca esteve tão vivo.
César BenjaminSetembro de 2004
César Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Contraponto, 1998, nona edição) e Bom Combate (Contraponto, 2004).
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