Publicado na Revista Marxismo Vivo
Ricardo Antunes
Professor Titular de Sociologia do Trabalho na Universidade de Campinas
Neste artigo, gostaria de indicar, de modo bastante breve, alguns pontos que me parecem de extrema relevância no mundo contemporâneo, quando se pensa na atualidade e contemporaneidade do socialismo. Dada a impossibilidade de tratá-los de modo mais detalhado, no âmbito deste pequeno texto, vou procurar tão-somente indicá-los sob a forma de notas.
No limiar do século XXI, em pleno curso da Guerra dos Delinqüentes que assolou o mundo depois do episódio de 11 de Setembro, com a retaliação desencadeada pelo Grande Império sobre os seus supostos inimigos (cujas conseqüências e desdobramentos são completamente imprevisíveis), a busca de um novo projeto socialista encontra-se na ordem do dia.
Hoje estamos em condições de fazer um balanço mais conclusivo da experiência vivida no século XX: derrotadas as suas mais importantes experiências, com a URSS à frente, é possível constatar que estes projetos não foram capazes de derrotar o sistema de metabolismo social do capital. Esse sistema, constituído pelo tripé capital, trabalho e Estado, não pode ser superado sem a eliminação do conjunto dos elementos que compreende este sistema. Como diz István Mészáros, em Beyond Capital (Merlin Press, Londres, 1995), não basta eliminar um ou mesmo dois de seus pólos. O desafio é superar o tripé, nele incluída a divisão social hierárquica do trabalho que subordina o trabalho ao capital. Por não ter avançado nesta direção, os países pós-capitalistas, com a URSS à frente, foram incapazes de romper a lógica do capital. Fenômeno assemelhado ocorre hoje com a China, que oscila entre uma abertura para o mercado mundial e o controle político rígido sobre o curso e as conseqüências desta política. Penso que a reflexão deste ponto é um primeiro e decisivo desafio.
Vamos para um segundo ponto: a experiência do “socialismo num só país” ou mesmo num conjunto limitado de países é um empreendimento também fadado à derrota. Como disse Marx, o socialismo é um processo histórico-mundial; as revoluções políticas podem inicialmente assumir uma conformação nacional, mais limitada e parcial. Mas as revoluções sociais têm um intrínseco significado universalizante. Na fase do capital mundializado, conforme caracterização de Chesnais (A Mundialização do Capital, Xamã, 1996), de um sistema global do capital desigualmente combinado, o socialismo somente poderá ser concebido enquanto um empreendimento global/universal.
Nesse contexto, as possibilidades de revolução política na América Latina devem ser pensadas como parte de uma processualidade que não se esgota em seu espaço nacional. Como vimos ao longo do século XX, a tese do “socialismo num só país” teve um resultado trágico. Repeti-la seria correr o risco da farsa. O desafio maior, portanto, é buscar a ruptura com a lógica do capital em escala mundial. Países como Brasil, México e Argentina podem ter papel de relevo neste cenário, visto que se constituem em pólos importantes da estruturação mundial do capital. São dotados de significativo parque produtivo e sua importância estratégica lhes confere grandes possibilidades, uma vez que estão muito diretamente vinculados ao centro do capital. Junto com a Índia, Rússia, Coréia, China, entre outros que não estão diretamente no centro do sistema capitalista, constituem uma gama de forças sociais do trabalho, capazes de impulsionar um projeto que tenha como horizonte uma organização societal socialista de novo tipo, renovada e radical.
Nesta quadra da história, o desenvolvimento de movimentos sociais de esquerda, capazes de enfrentar alguns dos mais agudos desafios deste final de século, mostra-se como bastante promissor. Desde o movimento social e político dos Zapatistas, no México, passando pelo advento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) no Brasil, pela retomada das lutas operárias e sindicais na América Latina dos anos 90, pelas explosões sociais dos trabalhadores desempregados, pelas batalhas de Seattle, Nice, Praga, Gênova, pelos encontros do Fórum Social Mundial, dentre tantas outras ações e batalhas que estão no horizonte imediato, e entre tantos outros movimentos de esquerda que emergem no mundo contemporâneo, mais episódicos ou mais abrangentes, ampliam-se os exemplos de novas formas de organização dos trabalhadores e dos precarizados, dos “novos proletários do mundo” que se rebelam contra o sentido destrutivo do capital e sua forma mundializada.
Cada vez mais assumem a forma de movimentos contra a completa mercantilização do mundo, contra a totalizante (e totalitária) “mercadorização” de tudo que se produz. Deverão perseguir de modo cada vez mais persistente o capital em sua própria materialidade. Como também indicou Mészáros, o capital tem um sistema de metabolismo social essencialmente extra-parlamentar. Desse modo, qualquer tentativa de superar este sistema de metabolismo social que se atenha à esfera institucional e parlamentar, estará impossibilitada de derrotá-lo. O maior mérito destes novos movimentos sociais de esquerda aflora na centralidade que conferem às lutas sociais. O desafio maior do mundo do trabalho e dos movimentos sociais de esquerda é criar e inventar novas formas de atuação autônomas, capazes de articular e dar centralidade às ações de classe. O fim da separação, introduzida pelo capital, entre ação econômica, realizada pelos sindicatos, e ação político-parlamentar, realizada pelos partidos, é absolutamente imperiosa. A luta contra o domínio do capital deve articular luta social e luta política num complexo indissociável.
O mundo do trabalho tem cada vez mais uma conformação mundializada. Com a expansão do capital em escala global e a nova forma assumida pela divisão internacional do trabalho, as respostas do movimento dos trabalhadores assumem cada vez mais um sentido universalizante. Cada vez mais as lutas de recorte nacional devem estar articuladas a uma luta de amplitude internacional. A transnacionalização do capital e do seu sistema produtivo obriga ainda mais a classe trabalhadora a pensar nas formas internacionais da sua ação, solidariedade e de confrontação. À mundialização dos capitais corresponde cada vez mais e de modo intransferível uma mundialização das lutas sociais.
A classe trabalhadora no mundo contemporâneo é mais complexa e heterogênea do que aquela existente durante o período de expansão do fordismo, como pude desenvolver em Adeus ao Trabalho? (ed. Cortez/Ed.Unicamp, 1995) e Os Sentidos do Trabalho (Ed. Boitempo, 1999). O resgate do que Alain Bihr chamou de sentido de pertencimento de classe, contra as inúmeras fraturas, objetivas e subjetivas impostas pelo capital, é um dos seus desafios mais prementes (Bihr, Da Grande Noite à Alternativa, Ed. Boitempo, 1998).
Impedir que os trabalhadores precarizados fiquem à margem das formas de organização social e política de classe é desafio imperioso no mundo contemporâneo. O entendimento das complexas conexões entre classe e gênero, entre trabalhadores “estáveis” e trabalhadores precarizados, entre trabalhadores nacionais e trabalhadores imigrantes, entre trabalhadores qualificados e trabalhadores sem qualificação, entre trabalhadores jovens e velhos, entre trabalhadores incluídos e entre os excluídos, enfim, entre tantas fraturas que o capital impõe sobre a classe trabalhadora, torna-se fundamental, tanto para o movimento dos trabalhadores e das trabalhadoras, como para a reflexão da esquerda anticapitalista. O resgate do sentido de pertencimento de classe (o que implica em entender as novas conformações da classe trabalhadora hoje) é questão crucial nesta viragem de século.
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